Já que a temática da semana gira em torno dos sentimentos e do coração , encontrei uma crônica de Rubem Alves , em seu livro " O amor que acende a lua" que veio bem a calhar com o tema. Como ela é um pouco extensa , vou postar apenas alguns trechos e deixo , claro , o gostinho de quero mais para que a leitura continue na obra que , como tudo aquilo que o Rubem escreve , é uma delícia. Deleitem-se !
"Dedico esta crônica aos apaixonados , mesmo sabendo que servirá para nada. É inútil falar aos apaixonados. Os apaixonados só ouvem poemas e canções. A paixão , experiência insuperável de prazer e alegria , pelo fato mesmo de ser uma experiência insuperável de prazer e alegria , coloca o apaixonado fora dos limites da razão. Todo apaixonado é tolo. Pode ser que ele escute a fala da razão. Escuta mas não acredita. Diz ele : "O meu caso é diferente"! Tolo mesmo é quem tenta argumentar com os apaixonados.
Começo minha inútil meditação com um verso terrível de T.S. Eliot. Ele está rezando. Ele sabe que somente Deus tem o poder para lidar com a loucura da paixão. Ele reza assim : "...e livra-me da dor da paixão não satisfeita , e da dor muito maior da paixão satisfeita." Todo mundo sabe que paixão não satisfeita dói. Mas poucos sabem que a paixão só existe se não for satisfeita. A paixão é um desejo de posse que , para existir , não pode se realizar. Como a fome : depois do almoço a fome acaba...
Paixão é fome. Ela só floresce na ausência do objeto amado. Mais precisamente , ela vive da ausência do objeto amado. Não se trata da ausência física , o objeto amado distante , longe. A dor da ausência física tem o nome de saudade. Saudade tem cura. A saudade é curada quando o objeto volta. A dor da paixão é diferente. Não tem cura. A saudade do objeto amado , mesmo quando ele está presente, é o perfume característico da paixão. Cassiano Ricardo sabia disso e escreveu :
"Por que tenho saudade
de você , no retrato , ainda que o mais recente ?
E por que um simples retrato,
mais que você , me comove , se você mesma está presente ?"
Que coisa mais esquisita ! Como pode ser isso ? Como se pode sentir saudade de algo que está presente ? A resposta é simples : a gente sente saudade de uma pessoa presente quando ela está se despedindo. Cecília Meireles , desenhando sua avó morta , a quem ela muito amava , disse : "Tu eras uma ausência que se demorava ; uma despedida pronta a cumprir-se." Dirão : "É natural. A avó já era velhinha..." É verdade. Mas o que caracteriza o olhar apaixonado é que ele percebe , no rosto da pessoa amada, essa ausência que se anuncia e essa despedida pronta a cumprir-se. O apaixonado pensa que sua paixão tem a ver com o objeto. Ele não sabe que foi o seu olhar que o tornou encantado. Os poetas são pessoas apaixonadas pela vida. E a sua paixão faz com que ela, a vida, apareça sempre banhada por uma luz crepuscular. Rilke perguntava, sem esperanças de resposta : "Quem foi que assim nos fascinou para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?" É o olhar da pessoa apaixonada que cria a imagem do objeto da paixão. É sobre a Cecília Meireles que o Drummond escreve. Mas sua descrição , eu creio, se aplicaria a todos os objetos da paixão :
"Não me parecia criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços de sua presença entre nós, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos. Distância , exílio e viagem transpareciam no sorriso benevolente...que confirmava a irrealidade do indivíduo."
A dor da paixão não satisfeita é essa : o apaixonado deseja possuir o objeto do seu amor, mas ele escapa sempre. Por isso ele sofre. Movido pela dor , quer possuí-lo. Não sabe que , para que sua paixão continue a existir , é preciso que ele continue escapando sempre. A paixão só ama objetos livres como os pássaros em voo.
"...e da dor muito maior da paixão satisfeita."
A dor da paixão não satisfeita é iluminada por uma alegria. O apaixonado vive na esperança de que um dia ele possuirá o objeto da sua paixão. Mas a "dor muito maior" da paixão satisfeita não tem mais esperanças. O objeto se desfez. Ela vive na tristeza do objeto perdido.(...)" - O Amor que acende a lua - Rubem Alves